O acordo de leniência da lei anticorrupção ganhou destaque recentemente com seu uso na chamada Operação Lava Jato, que apura supostos esquemas de corrupção na Petrobras. Como é sabido, seu uso não se restringe aos ilícitos da lei anticorrupção, mas também pode ser dirigido com vistas à isenção ou atenuação das sanções administrativas estabelecidas nos artigos 86 a 88 da lei de licitações.

Por sua vez, o acordo de leniência da lei antitruste mostrou ser importante mecanismo para detecção e punição de práticas anticompetitivas, em especial de cartéis. Desde outubro de 2003, quando foi firmado o primeiro acordo, até maio de 2015, foram firmados mais de 40 acordos pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE).

À luz da experiência antitruste, este artigo aborda três importantes desafios a serem enfrentados pelo Programa de Leniência da nova lei anticorrupção. O primeiro é a necessidade de criar um histórico sólido de repressão à corrupção para criar incentivos suficientes para a autodelação. O segundo é a resistência cultural à delação. O terceiro, por fim, é relacionado à necessidade de se criar procedimentos claros e confiáveis de negociação com as autoridades.

A "cenoura" e o "porrete"

Nos diferentes modelos de delação premiada está presente a lógica "da cenoura e do porrete" (stick-and-carrot approach): garantir um tratamento leniente (cenoura) para aquele que decide pôr um fim à conduta e delatar a prática que de outra forma estaria exposta a sanções severas (porrete). A inspiração para o programa vem da teoria dos jogos e do clássico "dilema do prisioneiro", explorando a natural desconfiança existente entre os membros de uma prática ilícita (não só entre pessoas físicas mas também entre pessoas físicas e jurídicas, ou entre pessoas jurídicas) e sua consequente instabilidade.

Para aqueles ilícitos em relação aos quais seja difícil reunir provas suficientes para a condenação – como é o caso dos cartéis e também de atos de corrupção – há benefícios para a autoridade em buscar a cooperação de um dos membros da conduta em troca de redução de sanções (ou mesmo imunidade) para aquele que delata.

Há vários aspectos relevantes na tomada de decisões sobre delatar ou não uma prática ilícita perante a autoridade. Em primeiro lugar, delatar significará, naqueles casos em andamento, o fim da participação na prática ao menos para o delator e, portanto, a impossibilidade de continuar se beneficiando de atos de corrupção (para garantir a alocação de contratos em licitação, por exemplo). Em outras palavras, há perda financeira para o delator. Há também um dano reputacional, especialmente considerando jogos de rodadas repetidas – é razoável supor que o delator queira continuar atuando no mercado e sua decisão de delatar outras empresas e funcionários públicos pode isolá-lo no futuro, não apenas de arranjos lucrativos, ainda que ilícitos, mas inclusive de iniciativas legítimas de um setor. Em terceiro lugar, ao confessar, o delator expõe a companhia a ações privadas de indenização, que, a depender do sistema, podem expor o agente a sanções pecuniárias mais gravosas que as próprias potenciais multas impostas pela autoridade.

Um programa de leniência apenas será efetivo se, além de haver ameaça de sanções severas para aqueles que não delatarem o esquema, o membro do arranjo ilícito tiver receio de a conduta ser detectada pelas autoridades por meio de investigações independentes. Além de instrumentos alternativos de investigação – como a possibilidade de conduzir diligências de busca e apreensão e existência de canais efetivos de denúncias por terceiros, inclusive anônimas – algumas jurisdições têm inserido em seus ordenamentos a previsão de recompensas monetárias para aqueles que delatarem esquemas ilícitos e a impossibilidade de indivíduos sofrerem represálias por denunciarem ilícitos perpetrados pela empresa em que trabalham.

O Reino Unido é exemplo de ambos. O U.K. Office of Fair Trading pode oferecer como recompensa até £100,000 (cem mil pounds) para aqueles que cooperarem com as autoridades. O valor deve ser fixado com base (i) na relevância da informação apresentada para a investigação; (ii) nos danos para a economia estimados pela conduta denunciada; e (iii) nos esforços e riscos empreendidos pelo delator para apresentar a denúncia. Por sua vez, o Public Interest Disclosure Act de 1998 impede represálias a funcionários que delatarem esquemas ilegais perpetrados pela companhia em que trabalhem.

Tanto no que se refere à "cenoura" quanto ao "porrete" é necessária cautela da autoridade para encontrar o equilíbrio entre os dois, de modo a, de um lado, criar incentivos à delação e, ao mesmo tempo, preservar a legalidade do processo de produção de provas e nossas garantias constitucionais.

Resistência cultural à delação1

Um dos maiores desafios para o Programa de Leniência no Brasil é a resistência cultural à delação, pelo estigma do delator. A delação premiada – da qual o Programa de Leniência da Lei nº 12.826/13 é espécie – recebe críticas por incentivar a traição, o que traria implicações ético-morais. Segundo visão disseminada no Brasil, não seria desejável que o Estado incentive conduta – traição – que gera desconfiança e desordem social.

O delator é estigmatizado, referido como "X-9", "dedo-duro", "alcaguete". A aversão à delação é bem acentuada no Brasil, o que pode ser justificada por célebres episódios que marcam o inconsciente coletivo do brasileiro: desde a delação de Joaquim Silvério dos Reis em 1789, que denunciou a Inconfidência Mineira em troca de perdão de dívidas, até episódios traumáticos ocorridos durante a ditadura militar.

Aqueles que atribuem valor ético negativo à delação pretendem equiparar pactos feitos no campo da licitude com aqueles feitos à margem da lei. É como sustentar que o assassino profissional tem o dever moral de matar a vítima já que recebeu pagamento para tanto. Não se pode esperar que o Direito valore positivamente lealdade desse tipo. No caso do exemplo, claramente o Direito não o faz, ao considerar nulos contratos com objetos ilícitos. Seria então nosso Direito Civil imoral por não estimular as pessoas a manterem sua palavra?

Ademais, do ponto de vista prático, associações criminosas são naturalmente instáveis. Quem se entrega ao mundo do crime não pode esperar de seus comparsas a mesma confiança que embasa relações lícitas. Ainda que houvesse a expectativa de um "omertà", temos aqui dois valores: a proteção de um bem jurídico que recebe tutela penal – e que, portanto, pressupõe um valor constitucionalmente protegido e socialmente desejado – versus a lealdade a companheiros. De forma simples, poderíamos dizer que se trata de lealdade à sociedade versuslealdade a indivíduos específicos e, a nosso ver, a primeira, e não a segunda, é que deveria prevalecer. E esta, aliás, foi a escolha da sociedade brasileira, por intermédio do legislador, ao introduzir o instituto da delação premiada em diversas leis especiais a partir de meados de 90. Não se pode deixar de reconhecer no legislador a expressão dos desejos de uma sociedade que, por definição, se alteram ao largo do tempo.

Apesar das resistências culturais, já é possível identificar nova corrente doutrinária que enxerga o valor ético daquele que decide colaborar com a investigação. Em outros países, como nos Estados Unidos, os chamados "whistleblowers" ganham destaque positivo. Em 2002, a revista TIME escolheu como "personalidades do ano" os delatores das fraudes da Enron e Worldcom, até hoje dois dos maiores escândalos corporativos globais. França e Japão são também exemplos de países que enfrentaram com sucesso o dilema cultural que o Brasil encara. O famoso cartel internacional das vitaminas foi delatado por uma empresa francesa, em 1998. No Japão, país com forte cultura de cooperação empresarial, mais de 500 investigações foram iniciadas com base em delação.

O uso consciente do instituto pelas autoridades e campanhas de conscientização será fundamental para reduzir a resistência cultural a programas de delação.

Previsibilidade do processo de negociação

Um dos grandes desafios da implementação do acordo de leniência da lei anticorrupção é a criação de procedimentos claros e confiáveis para o processo de negociação. É intuitiva a noção de que deve haver mecanismos de proteção das informações prestadas pré-assinatura do acordo e que o potencial delator não pode estar em posição pior do que a que já se encontrava na ausência de assinatura de acordo sob pena de não haver incentivos para a delação.

Para lidar com esta delicada questão, a autoridade antitruste brasileira, seguindo boas práticas internacionais, criou detalhado procedimento para a apresentação de proposta de acordo de leniência, regulamentado no Regimento Interno do CADE, em seus artigos 197 a 210. Merece destaque o seguinte dispositivo:

Art. 205. Não importará em confissão quanto à matéria de fato nem reconhecimento da ilicitude da conduta analisada a proposta de acordo de leniência rejeitada, da qual não se fará qualquer divulgação.

(...) §3º As informações e documentos apresentados pelo proponente durante a negociação do acordo leniência subsequentemente frustrado não poderão ser utilizados para quaisquer fins pelas autoridades que a eles tiveram acesso.

Como não é possível fazer uma "compartimentalização mental" em relação a informações que a autoridade tomou conhecimento, mas que não poderá utilizar por conta de uma negociação fracassada, a autoridade antitruste decidiu lidar com essa questão criando "Chinese walls" internos. Há unidade especialmente dedicada à negociação de acordos de leniência, que não abarca os servidores públicos responsáveis por conduzir as investigações do órgão. Se um acordo é atingido, a unidade de leniência transfere o caso para a unidade investigativa da Superintendência-Geral do CADE. Se não, as informações serão inutilizadas, sem contaminar eventual futura investigação. A lógica é que "não basta que a mulher de César seja honrada, é preciso que sequer seja suspeita" – se no futuro os mesmos agentes utilizassem as informações de alguma forma, ainda que obtidas de forma independente, sempre recairia a suspeita que foi feito uso indevido dos dados apresentados no contexto de possível colaboração gerando, no médio e longo prazo, desincentivos para a delação.

Esse arranjo funciona bem para fatos que ainda não estão sendo investigados pela autoridade. Para investigações em andamento, é razoável supor que apenas os envolvidos na investigação saberão o real valor de uma colaboração proposta. Neste caso, os próprios investigadores negociariam o acordo, sem, contudo, reter documentos ou buscar mais detalhes do que os necessários para que um acordo seja atingido. É o modelo adotado pelo CADE nos casos de Termo de Compromisso de Cessação de Prática para investigações em andamento de cartéis, que exigem igualmente confissão e cooperação por parte do proponente.

O desafio é especialmente relevante no caso da lei anticorrupção dado o grande número de autoridades com poder de firmar o acordo, sendo recomendável que as regras aplicáveis à negociação estejam contidas no aguardado regulamento a ser emitido pelo Poder Executivo Federal, servindo de modelo para normatização estadual e municipal. É fundamental que uma regulamentação nesse sentido reflita a necessidade de confidencialidade típica de um processo de negociação de leniência e eventuais consequências da negociação em outras jurisdições, situação típica dos casos de corrupção.

Conclusão

O acordo de leniência previsto na lei anticorrupção tem sua origem no instituto de mesmo nome da lei antitruste. No campo antitruste, o acordo mostrou-se importante instrumento para a detecção e punição de práticas ilícitas. As autoridades com poder para aplicar a lei anticorrupção deveriam espelhar-se na experiência do CADE para superar o desafio de fazer o programa tornar-se atrativo. Os pilares fundamentais são garantir a severa aplicação da lei, aumentar o medo de detecção e investir na transparência e previsibilidade do programa.

Footnote

1  Texto adaptado de publicação na Folha de São Paulo, Tendências/Debates, 25 de julho de 2015.

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