Diz-se ser preciso conhecer a história para evitar que ela se repita. Isso é verdade quanto ao financiamento profissional de litígios – pelo qual empresa especializada, usualmente estruturada como fundo de investimentos, se compromete a custear litígio de terceiro para receber percentual do proveito econômico em caso de êxito.

O financiamento profissional de litígios se originou e fortaleceu nos países de língua inglesa, sobretudo Inglaterra, Austrália e Estados Unidos, onde é conhecido como alternative legal financing ou third-party litigation funding. Tem ganhado crescente destaque entre empresas e advogados brasileiros. É aconselhável voltar os olhos à experiência passada e presente daqueles países para evitar possíveis distorções no uso do produto.

Financiar litígio ou litigar sendo financiado foram práticas proibidas na Inglaterra desde a Idade Média até 1967 – eram os ilícitos de maintenance (manter financeiramente demanda de terceiro) e de champetry (forma derivada que envolvia a finalidade de lucrar com o litígio). A proibição também vigorou em algumas jurisdições estaduais dos EUA com a parcial recepção do common law inglês. Proibia-se a prática porque o financiado poderia ser mero testa de ferro para prejudicar inimigos, obter ativos ou influenciar os tribunais em prol de interesses do financiador, que por uma ou outra razão não queria ou não podia figurar em juízo diretamente.

Essa visão restritiva felizmente foi superada, e a utilidade do financiamento de litígios para viabilizar o acesso ao Judiciário e à arbitragem é hoje amplamente reconhecida. Ainda assim, riscos similares àqueles que levaram o financiamento a ser proibido séculos atrás continuam a existir.

Caso rumoroso recente nos EUA é um bom exemplo. O grupo Gawker Media foi condenado em março de 2016 a pagar ao ator Hulk Hogan cerca de US$ 140 milhões por alegada quebra de privacidade em razão da publicação de vídeo íntimo; em junho de 2016, teve de ajuizar pedido de reorganização e proteção contra credores (Chapter 11 do Bankruptcy Code); em agosto de 2016, foi vendido para o grupo Univision. Seria apenas mais um caso de condenação (muito) vultosa não fosse a revelação de que foi Peter Thiel, fundador do PayPal e membro do conselho de administração do Facebook, quem custeou em segredo essa e outras ações movidas contra a Gawker, não relacionadas entre si. Especulou-se que o expediente seria mera vendeta de Thiel para arruinar a Gawker em razão de notícias de cunho pessoal publicadas anos antes.

É irrelevante discutir se Thiel recebeu ou receberá parte do proveito da sentença, e se fez os custeios diretamente ou mediante investimento em fundos especializados. O fato é que qualquer pessoa com riqueza comparável à dele poderia facilmente copiar a estrutura mais comum no mercado atual – fundo de investimento com gestores autônomos, contrato de financiamento, recebimento de percentual do êxito no litígio – e colocar em marcha uma agenda oculta qualquer.

A circunstância de o financiamento ser hoje tipicamente um investimento profissionalizado não significa que seu uso não possa ser distorcido ou que não possa afetar indevidamente o desfecho de um litígio.

Um investidor racional busca agir para maximizar sua chance de lucro. Se é certo que o financiador e seus investidores só lucrarão com uma sentença favorável, e se é certo que a sentença é resultado de uma dinâmica que envolve a estratégia processual das partes e o entendimento do órgão julgador, então o financiador e seus investidores terão incentivo para interferir em tal estratégia e em tal entendimento – mesmo não sendo parte no processo.

O financiamento profissional é atividade econômica, fundada no princípio da livre iniciativa (artigo 170, caput, da Constituição). Essa liberdade de atuação de investidores e financiadores deve ser ampla, sem ser absoluta. Limites de duas ordens se impõem: dum lado, o direito processual da parte contrária a um processo justo com julgamento imparcial; doutro, a vedação a que o processo seja usado para violar a lei ou escapar a seus efeitos.

Não há lei que discipline especificamente o financiamento profissional de litígios, mas isso não significa de modo algum que conflitos de interesses sejam permitidos. Quanto aos órgãos julgadores, o artigo 145, IV, do Código de Processo Civil determina a suspeição do juiz que tiver interesse "no julgamento do processo em favor de qualquer das partes" e o artigo 14 da Lei de Arbitragem estende as hipóteses de suspeição também aos árbitros; juízes e árbitros que tenham relacionamento com o investidor ou financiador terão interesse econômico ainda que indireto no desfecho da causa financiada, logo não devem funcionar nela. Quanto aos advogados, o Código de Ética e Disciplina contém diversas regras destinadas a prevenir o conflito de interesses entre o cliente e seu procurador; um advogado que represente os interesses do financiador ou investidor deve recusar o patrocínio da parte contrária ao financiado.

A questão da finalidade do processo (seja judicial ou arbitral) é um pouco menos nítida, mas igualmente importante. A lei não impede a priori ninguém de financiar qualquer demanda que seja, por qualquer razão que seja, com qualquer objetivo que seja. Não obstante, o processo não é fim em si mesmo – é meio para concretizar a aplicação da lei material.

O CPC pune com as penas da litigância de má-fé quem busca "conseguir objetivo ilegal" com o processo (artigo 80, III); também permite que a sentença proferida em casos de processo simulado e colusão seja objeto de ação rescisória (artigo 966, III), a qual pode ser proposta até mesmo pelo Ministério Público (artigo 967, III, b). Interessa aqui o princípio por trás das regras: a entrega da justiça se reveste também de interesse público, e não pode ser manipulada para ferir o próprio sistema jurídico. Embora a Lei de Arbitragem não contenha regras semelhantes expressamente, é claro que tampouco a arbitragem pode ser usada para violar a ordem jurídica. Ou seja: em casos limítrofes, provando-se que o financiador ou o investidor custeiam uma ou mais causas para atingir objetivo contrário à lei (por exemplo, destruição da reputação dum concorrente e desvio de sua clientela), o financiamento deve ser reputado ilícito.

O problema fundamental que subsiste é, na verdade, de assimetria de informação. O financiamento é negócio jurídico privado entre financiador e financiado. A parte contrária (e na maioria das vezes o próprio juiz ou árbitro) não tem ciência sequer da existência do negócio, que dirá da identidade de financiador e investidor. A informação disponível não permite à parte interessada alegar nem ao órgão julgador aferir uma eventual suspeição, por exemplo.

Seria desejável a edição de regras específicas impondo sempre às partes o dever processual de revelação (disclosure) da existência e das características do financiamento. As "IBA Guidelines on Conflicts of Interest in International Arbitration", publicadas pela International Bar Association (IBA) em 2014 contêm essas regras e também tratam doutras hipóteses de perda de independência dos árbitros e dos deveres de revelação correlatos, mas sua aplicação no Brasil é muito restrita ainda. À míngua de leis e de regulamentos de arbitragem brasileiros que imponham o dever de revelação ao financiado, compete aos juízes e árbitros, quer de ofício ou por provocação de qualquer das partes, determinar a ambas que informem a eventual existência e as características básicas do financiamento, inclusive a identidade do financiador e dos investidores se possível.

O financiamento profissional de litígios facilita o acesso à justiça e isso é muito positivo porque permite que boas demandas que doutra forma jamais seriam iniciadas sejam decididas – Hogan, afinal, convenceu o júri contra a Gawker no caso custeado por Thiel. A história mostra que mesmo assim é necessário atentar para o risco de desvirtuação do produto em casos extremos. Regras fundamentais para que terceiros não interfiram indevidamente em demandas já existem; basta que os órgãos julgadores sejam capazes de interpretá-las de forma sistemática e que sejam firmes na punição a partes, financiadores e investidores que as violem.

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