A Superintendência de Seguros Privados (Susep) decidiu acabar com a exigência do uso de peças originais, que levam a marca das montadoras, no atendimento dos sinistros de seguro de automóveis. Além da redução do preço das apólices, a iniciativa embute um objetivo maior e menos óbvio. A autarquia quer nivelar o campo da concorrência contra a chamada proteção veicular, um sistema informal de cobertura, ou seja, fora da regulação e fiscalização do órgão, segundo o diretor de supervisão de conduta do regulador, Rafael Scherre. 

"A gente espera que [com a iniciativa] as seguradoras passem a alcançar uma parte do mercado informal e a cobertura da frota aumente dentro da indústria formal", afirma Scherre ao Valor. 

De acordo com Felipe Bastos, sócio do escritório Veirano Advogados, "o mercado de seguros tradicional é altamente regulado e com forte estrutura de governança, isso acarreta custos e barreiras de entrada e desequilibra a concorrência com o mercado marginal". 

A autarquia editou ontem uma carta-circular pela qual formaliza a flexibilização do uso de autopeças nos procedimentos de reparos de veículos. A Susep esclarece que as companhias podem utilizar peças similares em lugar das originais, que chegam a custar até o dobro do valor do genérico. 

De acordo com o documento, para isso, será preciso autorização do cliente e que os contratos especifiquem qual tipo de peça pode ser usada e em quais casos. Na prática, significa que os clientes terão de optar por produtos distintos. "Se o consumidor quiser peças originais o seguro será mais caro, senão haverá uma redução de preço", aponta Scherre. 

O representante da Susep explica que, na verdade, não houve uma mudança efetiva de regulação. "O objetivo foi dar segurança jurídica às seguradoras." Segundo Scherre, a legislação atual já permite o uso de similares, mas uma interpretação rígida do Código de Defesa do Consumidor restringia a possibilidade. "Emitimos uma carta-circular para esclarecer e ratificar o entendimento da Susep sobre o artigo 21 do Código, que permite a utilização de todos os tipos de peças desde que o consumidor tenha autorizado, esteja ciente nas condições contratuais e as peças mantenham as especificações dos fabricantes." 

Na visão de Bastos, do Veirano, a opção da Susep pela carta-circular ajuda a agilizar processos normativos. "Apesar de não ser uma norma formal, a carta-circulares é um conteúdo normativo importante", afirma. Para o especialista, "o processo de uma nova norma seria muito mais moroso e a carta-circular acaba tendo uma eficácia vinculante". 

A segurança jurídica vai ajudar a nivelar a concorrência entre o seguro tradicional e a proteção veicular. Um projeto de lei em tramitação na Câmara dos Deputados pretende regular e colocar sob o guarda-chuva da Susep esse seguro alternativo. 

Enquanto o PL 3139/15 não avança, as associações de proteção veicular continuam a crescer de modo explosivo. Não há estatísticas oficiais, mas, baseado nas estimativas da Agência de Autorregulamentação das Entidades de Autogestão de Planos de Proteção Contra Riscos Patrimoniais (AAAPV), entre 2017 e 2019, o número de entidades do gênero aumentou em 50%, de 2 mil para 3 mil. 

A proteção veicular é baseada no conceito de mútuo, ou seja, o custo de consertos e indenizações é coberto pela arrecadação obtida com as mensalidades. Já as seguradoras, além dos prêmios recebidos pelas apólices, precisam constituir reservas técnicas para garantir o pagamento dos sinistros e obedecem regras de solvência com exigências de níveis de capital. 

Apesar de mais barato, o seguro alternativo envolve riscos. Em momento no qual há aumento de sinistros, como em períodos de chuvas, por exemplo, o volume financeiro pode não ser suficiente para arcar com todas as despesas. Assim, quem aciona a proteção pode ter de esperar até a entidade que administra o mútuo recompor o caixa. O associado pode ainda ser acionado a aumentar o valor de contribuição para compensar o rombo. 

Com a crise, a atratividade do produto cresceu. O valor de uma proteção veicular pode ser de menos da metade de um seguro tradicional. Mas os riscos são proporcionalmente maiores. Sem supervisão, as entidades se multiplicam sem controle e, com isso, a possibilidade de fraudes também. Sites de defesa do consumidor, como o "Reclame Aqui", registram dezenas de relatos que vão de atrasos de meses e falta de atendimento a calotes nas indenizações. 

Defensores da proteção veicular argumentam que o sistema surgiu justamente para atender a parcela de veículos que as seguradoras não costumam cobrir, como aqueles com mais de dez anos de uso. A origem desse seguro alternativo vem de associações de caminhoneiros que se uniram para custear coberturas a veículos de carga antigos. 

A inciativa da Susep não é trivial. O uso de peças genéricas pode significar uma redução pela metade do principal custo em um orçamento de reparo. Para se ter uma ideia do potencial de diminuição, o "seguro auto popular", lançado em 2016, chega a custar 30% menos comparado à apólice tradicional. Isso justamente por permitir o uso de peças originais recicladas, e com garantia. 

Segundo uma fonte da indústria, "a decisão da Susep, além de deixar a competição com a proteção patrimonial mais justa, vai trazer para o mercado regulado veículos com mais de dez anos de uso". Para a fonte, "essa é uma das grandes demandas do mercado". 

Apesar de ser uma das modalidades mais disseminadas, o seguro auto alcança apenas um terço da frota brasileira, segundo dados da Susep. E tanto custo quanto tempo de uso são barreiras para ampliar essa fatia. "O percentual [de veículos segurados] está estável ou diminuindo ao longo do tempo, o produto precisa ficar mais barato", afirma o diretor da superintendência. 

A idade média da frota brasileira, segundo o Sindicato Nacional da Indústria de Componentes para Veículos Automotores (Sindipeças), é de nove anos e sete meses. Segundo projeções da entidade, com a queda de vendas de modelos novos, a idade média dos caminhões em circulação vai alcançar 11 anos e 11 meses em 2020, enquanto a dos automóveis vai atingir a marca de dez anos no fim do próximo ano. 

De acordo com o Sindipeças, 46,8% dos 2 milhões de caminhões em atividade têm mais de dez anos, ou seja, 936 mil veículos de carga. No caso dos automóveis, 38% têm mais de dez anos e 47,3%, entre quatro e dez anos. Isso significa que 14 milhões de veículos de passeio, de um total de 37 milhões, rodam há mais de uma década e estariam fora do radar das seguradoras.

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