Resumo

De modo a acompanhar a tendência observada noutros mercados europeus, foi introduzida, em Portugal, a figura dos fundos de créditos. Estes organismos de investimento alternativo especializado, têm como objetivo a melhoria do financiamento da economia através de concessão de empréstimos às empresas e da aquisição de empréstimos originados por bancos. Com o presente texto pretendemos dar a conhecer os principais traços do novo regime jurídico dos fundos de créditos, que foi introduzido pelo Decreto-Lei n.º 144/2019, de 23 de setembro, bem como fazer uma apreciação crítica do mesmo.

Palavras-chave:

Fundos de Créditos, Concessão de Empréstimos, Créditos em Incumprimento.

Abstract

In order to follow the trend observed in other European markets, loan funds were introduced in Portugal. These specialised alternative investment funds are aimed at improving the financing of the economy through the granting of loans to companies and the acquisition of loans originated by banks. With this text we intend to give notice of the main features of the new legal framework of loan funds, which has been introduced by Decree-Law no. 144/2019, of 23 September, as well as to provide a critical review of it.

Key Words:

Loan Funds, Loan Granting, Non-Performing Loans.

FECHA DE RECEPCIÓN: 15-1-2020

FECHA DE ACEPTACIÓN: 30-2-2020

Ferreira Malaquias, Pedro; Venâncio, Julio (2020). A introdução dos loan funds em Portugal. Actualidad Jurídica Uría Menéndez, 54, pp. 93-103 (ISSN: 1578-956X).

1. Introdução

Com o Decreto-Lei n.º 144/2019, de 23 de setembro ("Decreto-Lei 144/2019"), foi introduzida a figura dos organismos de investimento alternativo especializado de créditos ("OIAE de créditos"), também conhecidos como loan funds.

Neste sentido, a Lei n.º 18/2015, de 4 de março, que estabelece o regime jurídico do capital de risco, empreendedorismo social e investimento especializado ("RJCR"), e o Regulamento da CMVM n.º 3/2015, de 3 de novembro, que procede ao respetivo desenvolvimento ("Regulamento da CMVM 3/2015"), foram alterados em conformidade.

A criação dos OIAE de créditos tem como objetivo diversificar as fontes de financiamento, em particular das pequenas e médias empresas, e representa o fim do monopólio dos bancos na concessão de crédito às empresas, o que saudamos.

A melhoria do financiamento da economia com a introdução dos OIAE de créditos será alcançada: (i) de forma direta, através da concessão de crédito às empresas; e (ii) de forma indireta, através da aquisição de créditos, incluindo créditos em incumprimento (non-performing loans) detidos pelos bancos, que ficam libertos para retomar a atividade de concessão de crédito.

Os OIAE de créditos apresentam-se, assim, como uma nova forma de dinamização do mercado de capitais, numa tentativa de acompanhar a tendência observada noutros mercados europeus de referência que admitem a figura dos loan funds1.

Por último, antecipa-se que a pandemia gerada pelo Covid-19 terá um impacto económico substancial em Portugal. Neste contexto, os OIAE de créditos podem vir a assumir um papel fundamental no financiamento à economia, seja na concessão de crédito às empresas, seja na libertação dos bancos de non-performing loans (NPLS) e/ou non-performing exposures (NPEs).

2. Principais características

2.1. A atividade de concessão de crédito

Os OIAE de créditos são organismos de investimento alternativo especializado cujo objeto consiste, a título exclusivo ou principal, nas seguintes atividades: (i) concessão de empréstimos diretamente pelos OIAE de créditos aos mutuários (originação de créditos ou loan origination); e (ii) participação em consórcios de concessão de crédito ou na aquisição pelos OIAE de créditos de empréstimos originados por bancos ou outras entidades, por via de cessão de créditos (participação no crédito ou loan participation).

Do ponto de vista regulatório, estamos perante uma dupla exceção. Por um lado, o artigo 8.º, n.º 2, do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras ("RGICSF"), estabelece que apenas as instituições de crédito e sociedades financeiras podem exercer, a título profissional, a atividade de concessão de crédito.

Adicionalmente, no Regime Geral dos Organismos de Investimento Coletivo ("RGOIC") vigora o princípio geral de proibição de concessão de crédito pelos organismos de investimento coletivo, decorrente do artigo 88.º, n.º 1, da Diretiva 2009/65/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de julho de 2009, que coordena as disposições legislativas, regulamentares e administrativas respeitantes a alguns organismos de investimento coletivo em valores mobiliários ("Diretiva UCITS").

Sucede que, no quadro da Diretiva 2011/61/EU, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8 de junho de 2011, relativa aos gestores de fundos de investimento alternativos ("AIFMD"), não existe disposição que impeça os organismos de investimento alternativo de conceder crédito2.

2.2. Estrutura

Quanto à estrutura, os OIAE de créditos podem assumir a forma societária de "sociedade de créditos" ou a forma contratual de "fundo de créditos", consoante o capital seja representado por ações ou unidades de participação.

Adicionalmente, os OIAE de créditos são organismos de investimento alternativo fechados, sendo o número de unidades de participação fixo. Em virtude do risco de liquidez associado aos ativos dos OIAE de créditos, compreende-se a configuração como organismos de investimento alternativo fechados, de modo a acautelar eventuais situações de quebra súbita de confiança dos investidores ou de corrida aos resgates, cuja vendas das unidades de participação a qualquer preço ("fire sales") têm efeitos negativos para os respetivos organismos de investimento coletivo e a situação patrimonial dos participantes.

Por último, os OIAE de créditos ficam sujeitos a grande parte do regime jurídico dos organismos de investimento em capital de risco. Neste sentido, as sociedades de créditos devem adotar o tipo de sociedade anónima e dispor de um capital social mínimo de 300.000 euros, e os fundos de créditos devem ter um capital subscrito mínimo de 1.000.000 euros.

2.3. Comercialização e gestão

Os OIAE de créditos são organismos de investimento alternativo especializado e, portanto, as ações de sociedades de créditos ou as unidades de participação de fundos de créditos apenas podem ser comercializadas junto de investidores qualificados. Trata-se de uma restrição à comercialização que se justifica pelos riscos inerentes à atividade de concessão de crédito desenvolvida por estes organismos de investimento alternativo especializado.

A comercialização dos OIAE de créditos não deve, contudo, ser confundida com a aquisição de participações nas entidades gestoras dos OIAE de créditos, sendo essa aquisição regulada por normas especialmente previstas no RGOIC ou RJCR, consoante o caso, designadamente em matéria de avaliação da adequação dos titulares de participações qualificadas.

De referir ainda que os OIAE de créditos podem ser heterogeridos ou autogeridos, consoante a sua gestão esteja ou não cometida a uma entidade terceira. Em particular, os fundos de créditos são administrados por uma entidade gestora, que deve assumir a forma de: (i) sociedade gestora de organismos de investimento coletivo; ou (ii) sociedade gestora de fundos de capital de risco.

2.4. Supervisão

Por último, os OIAE de créditos ficam sujeitos à supervisão da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários ("CMVM"), a quem incumbe fiscalizar o cumprimento dos requisitos e deveres aplicáveis aos OIAE de créditos.

3. Investimento e alavancagem

3.1. Ativos elegíveis

Os OIAE de créditos têm como objeto a concessão e aquisição de créditos. Em particular, o património destes organismos de investimento alternativo especializado pode ser constituído por créditos decorrentes de:

  1. Empréstimos concedidos pelo OIAE de créditos, através da participação do OIAE de créditos num consórcio bancário; e
  2. Participações em empréstimos adquiridas pelo OIAE de créditos ao originador do crédito ou a terceiros.

Quanto à maturidade, o artigo 9.º-B, n.º 2, do Regulamento da CMVM 3/2015, estabelece que o prazo de vencimento dos créditos não pode exceder a duração do OIAE de créditos.

Efetivamente, os ativos de investimento dos OIAE de créditos são, por natureza, ilíquidos e, não sendo valores mobiliários, não permitem o acesso à liquidez dos mercados secundários. Ao exigir- -se que o prazo de vencimento dos créditos não exceda a duração do OIAE de créditos, o legislador pretendeu mitigar o risco de liquidez, bem como situações de desfasamento entre maturidade e liquidez, evitando-se que os OIAE de créditos, cuja duração se aproxima do fim, tenham de alienar os créditos por valor inferior ao de mercado, afetando negativamente o retorno obtido pelos participantes, em sede de liquidação.

Parece-nos, contudo, que – numa perspetiva prática – a solução consagrada no artigo 9.º-B, n.º 2, do Regulamento da CMVM 3/2015 apresenta pouca flexibilidade. A título de exemplo, numa transação de aquisição de uma carteira de créditos a um banco, um OIAE de créditos poderá ficar excluído do processo, com prejuízo para todas as partes envolvidas, apenas porque essa carteira tem alguns créditos que ultrapassam a duração do OIAE de créditos. Neste sentido, sugerimos que, numa revisão futura do regime jurídico dos OIAE de créditos, seja ponderada a introdução de uma exceção para situações devidamente justificadas, sujeitas eventualmente a um limite máximo dos créditos que podem exceder a duração do OIAE de créditos, nestas circunstâncias.

Adicionalmente, o património dos OIAE de créditos pode ser constituído por:

  1. Liquidez, com um limite máximo de 20% dos ativos do OIAE de créditos (aplicável a partir dos 6 meses de atividade do OIAE de créditos);
  2. Títulos representativos de dívida emitidos por mutuários elegíveis, com um limite máximo de 20% dos ativos do OIAE de créditos;
  3. Outros ativos que lhe advenham da satisfação dos créditos ou que demonstradamente sejam necessários para maximizar a satisfação dos mesmos.

O artigo 9.º-B, n.º 4, do Regulamento da CMVM 3/2015, estabelece ainda um elenco taxativo dos instrumentos que podem ser considerados como liquidez, em particular: "depósitos bancários suscetíveis de mobilização a todo o momento, certificados de depósito, unidades de participação de organismos de investimento do mercado monetário ou do mercado monetário de curto prazo e instrumentos financeiros emitidos ou garantidos por um Estado membro com prazo de vencimento residual inferior a 12 meses".

O legislador introduziu, no entanto, um limite máximo de 20% aplicável à liquidez. Numa perspetiva prática, parece-nos que a solução consagrada apresenta pouca flexibilidade. Por um lado, um OIAE de créditos poderá ficar impedido de vender uma carteira de créditos e, portanto, de aproveitar as condições de mercado ou uma oportunidade de negócio vantajosa. Por outro lado, o reembolso antecipado dos créditos pelos mutuários, poderá levar o OIAE de créditos a ultrapassar o limite de 20%. Neste sentido, sugerimos que, numa revisão futura do regime jurídico dos OIAE de créditos, seja ponderada a introdução de um prazo razoável (v.g. 6 meses) para o OIAE de créditos pôr termo a qualquer situação de ultrapassagem pontual do limite de 20%.

Por último, aplaude-se a inclusão dos títulos representativos de dívida no leque de ativos elegíveis para o património dos OIAE de créditos, tendo em consideração que os financiamentos às empresas são frequentemente estruturados como emissões de obrigações ou outros títulos representativos de dívida. Contudo, a imposição de um limite máximo de 20% acaba por retirar alguma flexibilidade à gestão da atividade dos OIAE de créditos. Efetivamente, a opção por conceder financiamento através da emissão de títulos representativos de dívida ou da celebração de contratos de abertura de crédito depende de diversos fatores (v.g. económicos, jurídicos, fiscais) a serem analisados no devido momento.

3.2. Operações proibidas

O artigo 5.º-C do RJCR estabelece, no entanto, algumas limitações à atividade dos OIAE de créditos. Em particular, são consideradas operações proibidas:

  1. A realização de vendas a descoberto de instrumentos financeiros, a utilização de operações de financiamento direto ou indireto de valores mobiliários, incluindo o empréstimo de valores mobiliários, e a utilização de instrumentos financeiros derivados, exceto com finalidades de cobertura de risco; e
  2. A concessão de empréstimos a pessoas singulares; instituições de crédito; outros organismos de investimento coletivo; e a entidades relacionadas com o OIAE de créditos, nomeadamente os seus participantes, a entidade gestora e o depositário.

Apesar de o artigo 5.º-C do RJCR estabelecer a proibição de concessão de crédito a pessoas singulares, cumpre realçar que as razões que convidam a que os OIAE de créditos não concedam, em mercado primário, créditos a pessoas singulares, podem já não se justificar num cenário de mercado secundário. Adicionalmente, a proibição de concessão de crédito a pessoas singulares não deverá abranger a compra de carteiras de créditos em incumprimento (non-performing loans), na medida em que, sendo essa compra livre para qualquer entidade no mercado "normal", não se vislumbra que os OIAE de créditos pudessem ser negativamente discriminados nestas operações.

3.3. Alavancagem

Em linha com a opinião da European Securities Market Commission, emitida em 12 de abril de 2016, sobre os "Key principles for a European framework on loan origination by funds", foram introduzidos limites ao endividamento dos OIAE de créditos. Assim, o artigo 5.º-D do RJCR estabelece que os OIAE de créditos podem contrair, a título próprio, empréstimos para financiar a sua atividade, desde que observados os seguintes requisitos: (i) os empréstimos tenham duração não inferior à duração dos respetivos ativos que pretendem financiar; e (ii) não ultrapassem o limite de 60% do respetivo ativo total.

3.4. Diversificação

De modo a acautelar preocupações relacionadas com os riscos de concentração, contraparte e contágio, assegurando a diversificação dos créditos detidos pelo OIAE de créditos, o artigo 9.º-C do Regulamento da CMVM 3/2015 estabelece um princípio de diversificação da carteira de créditos detida pelo OIAE de créditos.

Neste sentido, a partir dos primeiros 12 meses de atividade do OIAE de créditos, a respetiva carteira de créditos deve estar suficientemente diversificada, com um limite de créditos, por entidade ou por entidades em relação de controlo ou domínio3 , de 20% do ativo total do OIAE de créditos.

Em particular, no que se refere ao prazo de 12 meses, julgamos que este constitui um equilíbrio adequado entre a necessidade de impor uma planificação exigente na constituição do OIAE de créditos e a de acolher eventuais vicissitudes que ocorram durante o período inicial de investimento.

4. Deveres aplicáveis à entidade gestora de OIAE de créditos

4.1. Adequação dos membros do órgão de administração

Quanto à adequação dos titulares do órgão de administração da entidade gestora do OIAE de créditos, o artigo 9.º-A do Regulamento da CMVM 3/2015 exige que, pelo menos, um membro tenha experiência comprovada nas atividades de concessão de crédito e de avaliação e gestão do risco de crédito.

Apesar de o artigo 9.º-A do Regulamento da CMVM 3/2015 referir-se apenas ao requisito de experiência comprovada em matéria de concessão de crédito, importa realçar que a CMVM aprecia a idoneidade de todos os membros dos órgãos de administração e fiscalização de entidades sob a sua supervisão, em particular as entidades gestoras de OIAE de créditos4.

4.2. Deveres nas relações com os mutuários

O artigo 9.º-G do Regulamento da CMVM 3/2015 estabelece alguns deveres aplicáveis nas relações entre a entidade gestora do OIAE de créditos e os mutuários. Em particular, a entidade gestora do OIAE de créditos incorre:

  1. Nos deveres de informação previstos no artigo 312.º, n.º 1 a), e) e h), 3 e 4, do Código dos Valores Mobiliários, sendo igualmente aplicável a periodicidade de comunicação da informação relativa ao custo do serviço prevista no n.º 9 do referido artigo;
  2. No dever de segredo profissional, nos termos previstos para o segredo bancário5.

Adicionalmente, na concessão de empréstimos pelos OIAE de créditos, aplica-se o regime da concessão de crédito bancário, em particular:

  1. A informação a prestar aos mutuários em matéria de taxas de juro e outros custos das operações de crédito;
  2. A contagem do prazo, juros remuneratórios, capitalização de juros e mora do devedor; e
  3. O critério utilizado no arredondamento e no indexante da taxa de juro.

Neste contexto, pode afirma-se que o legislador recorreu à aplicação de deveres e regras bancários, com o intuito de assegurar a promoção de um level playing field face à atividade de concessão de crédito promovida por instituições de crédito e sociedades financeiras, assegurando a igualdade de tratamento do mutuário, independentemente do tipo de mutuante em causa. Adicionalmente, pretende-se assegurar a promoção de clareza, transparência e prestação de informação de qualidade aos mutuário; maior certeza jurídica quanto ao conteúdo da relações creditícias; e a comparabilidade entre créditos concedidos por instituições de crédito ou sociedades financeiras e OIAE de créditos.

4.3. Testes de esforço

Tendo em consideração que os OIAE de créditos estão sujeitos às alterações das condições económicas envolventes, e de forma a avaliar e acompanhar o risco de liquidez, a entidade gestora do OIAE de créditos deve realizar testes de esforço, com uma periodicidade mínima trimestral.

Os testes de esforço devem seguir os termos em que são realizados testes de esforço pelas entidades gestoras de organismos de investimento em capital de risco. Neste sentido, o artigo 59.º, n.º 1, do RJCR, estabelece que "As entidades responsáveis pela gestão procedem regularmente a testes de esforço, em condições normais e em condições excecionais de liquidez, que lhes permitam avaliar e acompanhar os riscos de liquidez suportados pelo organismo de investimento em capital de risco naquelas condições".

4.4. Análise do risco de crédito

A entidade gestora do OIAE de créditos deve implementar um sistema de gestão de risco, que inclui:

  1. O modelo de concessão de crédito, bem como os critérios de seleção dos créditos e de elegibilidade dos devedores e parâmetros de pontuação;
  2. A criação de ficheiros de crédito com a compilação de toda a informação qualitativa e quantitativa sobre os mutuários;
  3. Um procedimento de decisão de concessão de crédito claramente formalizado e que descreva o processo de tomada de decisão pelos órgãos competentes, incluindo nas situações em que a gestão do risco seja subcontratada;
  4. A política de gestão de garantias e colaterais;
  5. Procedimentos de gestão de situações de incumprimento, incluindo o acompanhamento, a reestruturação e a prorrogação de créditos;
  6. Procedimentos de mensuração dos créditos.

No âmbito da concessão de crédito, o procedimento de análise de risco pode ser automatizado mediante definição do critério de elegibilidade e, em certas situações, utilizando um sistema de atribuição de uma pontuação ao empréstimo, devendo:

  1. O algoritmo utilizado ser descrito no programa de atividades;
  2. A elegibilidade para o critério ser documentada no dossier de crédito;
  3. O processo de tomada de decisão ser formalizado.

No caso de um crédito concedido em associação do OIAE de créditos num consórcio bancário, a informação qualitativa e quantitativa sobre os mutuários pode ser recolhida por um outro participante no consórcio bancário, incluindo por instituição de crédito do mesmo grupo da entidade gestora do OIAE de créditos.

Neste caso, a entidade gestora do OIAE de créditos deve ainda assim manter dossiers de crédito autónomos e estabelecer procedimentos autónomos de decisão de concessão de crédito, incluindo sobre a análise de risco.

4.5. Avaliação, monitorização e controlo do risco de crédito

A entidade gestora do OIAE de créditos deve estabelecer um procedimento de monitorização adequado, no mínimo numa base trimestral, das alterações à qualidade de cada crédito individualmente considerado, determinando, quando aplicável, os níveis de depreciação ou apreciação no valor dos créditos e, quando aplicável, nas garantias e no colateral.

Este procedimento de monitorização previsto no artigo 9.º-E do Regulamento da CMVM 3/2015, inclui assim as medidas operacionais a serem adotadas em caso de materialização do risco de crédito.

5. Algumas reflexões finais

Aproveitamos o presente artigo, para louvar a iniciativa legislativa de introdução da figura dos loan funds em Portugal. Adicionalmente, fazemos referência ao papel essencial da CMVM na construção do regime jurídico dos OIAE de créditos. Em particular, destacamos as consultas públicas realizadas pela CMVM, cujos contributos do supervisor do mercado de capitais e dos agentes do mercado vieram enriquecer e aprimorar o regime jurídico aplicável aos OIAE de créditos.

Não obstante o mérito desta iniciativa legislativa, aproveitamos para partilhar algumas reflexões finais e sugestões de alteração legislativa, que podem contribuir para o sucesso dos loan funds.

5.1. Regime fiscal aplicável aos OIAE de créditos

Como aspeto principal, destacamos o regime fiscal. Efetivamente, a ausência de certeza quanto ao regime fiscal aplicável aos OIAE de créditos poderá colocar Portugal em desvantagem relativamente a outros Estados-Membros da União Europeia, com prejuízo para os agentes do mercado, os investidores, e o mercado em geral.

Neste sentido, incentivamos o legislador ou a Autoridade Tributária e Aduaneira a clarificarem quanto antes o regime fiscal aplicável aos OIAE de créditos. Sem isso, dificilmente este projeto passa do papel.

5.2. Emissão de instrumentos financeiros representativos de dívida

A propósito do endividamento dos OIAE de créditos, o artigo 5.º-D do RJCR estabelece que os OIAE de créditos podem contrair, a título próprio, empréstimos para financiar a sua atividade. Para efeitos de clareza jurídica, sugerimos a clarificação do conceito de "empréstimo" e, em particular, se um OIAE de créditos pode emitir instrumentos financeiros representativos de dívida (v.g. obrigações) para financiar a sua atividade.

5.3. Cessão de créditos em massa

O Decreto-Lei n.º 42/2019, de 28 de março ("Decreto-Lei 42/2019"), veio estabelecer um regime simplificado para a cessão de créditos em massa, dispensando a habilitação processual dos adquirentes em cada um dos processos em que o crédito adquirido esteja a ser exigido e simplificando-se as operações registais associadas.

O referido diploma vem, assim, corporizar uma das medidas que resultam do Programa Capitalizar, que foi aprovado pelo Governo através da Resolução do Conselho de Ministros n.º 42/2016, de 18 de agosto, com o intuito de melhorar as condições de acesso ao financiamento das micro, pequenas e médias empresas. Em particular, a agilização das transações sobre carteiras de crédito contribui significativamente para a redução dos níveis de crédito não produtivos.

Neste contexto, importa salientar que é permitida, aos OIAE de créditos, a aquisição de créditos bancários. No âmbito da consulta pública da CMVM n.º 8/2019, em comentário ao artigo 9.º-B do Regulamento da CMVM 3/2015, a CMVM refere que "sendo esta uma área de sobreposição com a titularização de créditos, confere-se aos operadores do mercado a flexibilidade para poderem avaliar e decidir pela opção que se lhes afigure mais vantajosa, entre a opção da titularização de créditos ou dos OIAE de créditos".

Sucede, no entanto, que o conceito de "cessão de créditos em massa" previsto no artigo 2.º do Decreto-Lei 42/2019, pressupõe que o cessionário seja uma instituição de crédito, sociedade financeira ou sociedade de titularização de créditos, o que inviabiliza a aplicação deste regime simplificado aos OIAE de créditos6.

À luz do acima exposto, tendo em consideração que a melhoria das condições de financiamento das pequenas e médias empresas é um objetivo comum ao Decreto-Lei 42/2019 e ao DecretoLei 144/2019, que introduziu a figura dos OIAE de créditos em Portugal, e de modo a evitar que estes se encontrem em desvantagem normativa relativamente às sociedades e aos fundos de titularização de créditos, sugerimos a inclusão dos OIAE de créditos como possíveis cessionários dos referidos "créditos em massa".

5.4. Central de responsabilidades de crédito

A central de responsabilidades de crédito gerida pelo Banco de Portugal ("CRC") tem como funções, entre outras, centralizar as responsabilidades efetivas ou potenciais de crédito concedido por entidades sujeitas à supervisão do Banco de Portugal ou por quaisquer outras entidades que, sob qualquer forma, concedam crédito ou realizem operações análogas.

Em particular, o artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 204/2008, de 14 de outubro, estabelece que são entidades participantes na CRC "as entidades sujeitas à supervisão do Banco de Portugal que concedam crédito, sucursais de instituições de crédito com sede no estrangeiro e atividade em Portugal e outras entidades designadas pelo Banco de Portugal que, de algum modo, exerçam funções de crédito ou atividade com este diretamente relacionada".

Tendo em consideração o risco de crédito e o risco sistémico associado à atividade de concessão de crédito desenvolvida pelos OIAE de créditos, entendemos que o Banco de Portugal deveria equacionar a designação daqueles como entidades participantes na CRC. Efetivamente, a consulta da informação constante na CRC, em particular as responsabilidades efetivas ou potenciais decorrentes de operações de crédito, sob qualquer forma ou modalidade, de que sejam beneficiárias pessoas coletivas, afigura-se essencial para uma adequada análise do risco de crédito pelos OIAE de créditos. Também aqui, e a não ser assim, não estando os OIAE de créditos integrados na CRC, toda a massa de créditos vivos detidos por estas entidades, fica de fora da CRC, com uma evidente deterioração do papel e função da própria CRC.

Footnotes

1. É o caso da Alemanha, Espanha, França, Irlanda, Itália, entre outros.

2. Neste sentido, o Parecer denominado "Key principles for a European framework on loan origination by funds", emitido pela European Securities Market Commission, refere o seguinte: "Loan origination by funds is in principle only possible for AIFs, as Article 88(1) of the UCITS Directive prohibits UCITS management companies and investment companies from granting loans or acting as a guarantor on behalf of a common fund or third parties".

3. O conceito de controlo ou domínio referido no artigo 9.º-C do Regulamento da CMVM 3/2015 corresponde ao conceito de controlo ou domínio previsto no artigo 2.º, n.º 1 d), do RGOIC (aplicável ex vi artigo 2.º, n.º 5, do RJCR).

4. Em conformidade com o artigo 71.º-S do RGOIC, relativamente às sociedades gestoras de organismos de investimento coletivo, e com o artigo 47.º do RJCR (aplicável ex vi 5.º, n.º 8, do RJCR), relativamente às sociedades gestoras de fundos de capital de risco.

5. O segredo bancário encontra-se regulado no Capítulo III do Título VI do RGICSF.

6. Efetivamente, o Decreto-Lei 144/2019 revogou o artigo 6.º, n.º 1 b) vi), do RGICSF, que qualificava as sociedades gestoras de fundos de investimento como sociedades financeiras.

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