Nos últimos meses têm sido noticiados diversos julgamentos de processos administrativos envolvendo a tributação de atletas e artistas. Mais especificamente, o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) e a Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF) têm analisado a legalidade da constituição de pessoas jurídicas por tais indivíduos com o fim de explorar seus direitos de imagem, entre outras atividad

A questão não está restrita a atletas e artistas. Há muito a Receita Federal do Brasil (RFB) considera que rendimentos auferidos por pessoas jurídicas que exercem determinadas atividades – sobretudo as de caráter individual e personalíssimo (tais como atividades artísticas, culturais, científicas e intelectuais) – devem ser tributados na pessoa física que exerce a atividade. Para a RFB, a constituição de pessoa jurídica nessas situações seria abuso de direito e simulação, visando tão somente a redução da carga tributária.

Numa tentativa de resolver o impasse, o art. 129 da Lei nº 11.196, de 21 de novembro de 2005, veio esclarecer que os rendimentos decorrentes da prestação de serviços intelectuais, inclusive os de natureza científica, artística ou cultural, realizados por pessoa jurídica, ainda que prestados em caráter personalíssimo, sujeitam-se à tributação aplicável às pessoas jurídicas. A exceção trazida pela lei é justamente a hipótese de "abuso da personalidade jurídica", que autoriza desconsiderar a existência da pessoa jurídica e submeter a pessoa física à tributação. Trata-se de regra meramente interpretativa, vez que apenas esclareceu o que sempre foi aplicável.

Por meio da Solução de Consulta nº 15, de 23 de fevereiro de 2015, a Coordenação Geral de Tributação (COSIT) apresentou entendimento compatível, decidindo que: (i) se os serviços forem prestados por uma sociedade, em caráter personalíssimo ou não, a remuneração deles decorrente será tributada na pessoa jurídica, independentemente da designação de quaisquer obrigações a sócios ou funcionários; (ii) atividades exercidas sob a forma de Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (Eireli) também devem ser tributadas de acordo com as regras aplicáveis às demais pessoas jurídicas, e (iii) somente serviços prestados individualmente por pessoa física, ainda que cadastrada no CNPJ como empresa individual (exceto Eireli), serão tributados na pessoa física, mesmo que possua estabelecimento em que desenvolve suas atividades e empregue auxiliares.

Contudo, isso não tem impedido o Fisco de autuar contribuintes e exigir o pagamento de tributos e multas como se os rendimentos tivessem sido auferidos pelo sócio pessoa física. O tema foi objeto de análise pela CSRF, órgão responsável por uniformizar a jurisprudência tributária no âmbito administrativo federal.

Em decisão publicada em 29 de maio de 2014, a CSRF entendeu que a legislação busca evitar que serviços prestados por pessoas físicas na qualidade de empregados (ou seja, quando a prestação de serviços envolve subordinação, pessoalidade, habitualidade, trabalho por pessoa física e onerosidade) sejam tributados como se a prestação tivesse sido realizada por pessoa jurídica. No caso sobre o qual versava a decisão, a CSRF afastou a autuação por considerar que a pessoa jurídica cuja existência foi questionada prestava serviços a diversos tomadores, sem exclusividade, elemento que descaracterizaria a relação de emprego.

Poucos meses depois, em sessão de 10 de setembro de 2014, o CARF considerou lícita a constituição de pessoas jurídicas para explorar direito ao uso de imagem, nome, marca ou som da voz de atletas, técnicos e comissão técnica, considerando aplicável o art. 129 da Lei nº 11.196/05. Os períodos de apuração em discussão eram todos posteriores ao referido dispositivo. Este entendimento levou o CARF a afastar a exigência de contribuições previdenciárias sobre os valores pagos por clube de futebol às pessoas jurídicas constituídas por membros da sua comissão técnica, já que não poderiam ser considerados como rendimentos do trabalho

As manifestações do Poder Judiciário sobre o tema ainda são esparsas, mas em dezembro de 2013 o Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2) manifestou entendimento similar ao acima. A Corte considerou que o art. 129 da Lei nº 11.196/05 somente poderia ser afastado se os serviços prestados fossem decorrentes de relação de trabalho, e ainda, que essa norma seria interpretativa, o que autorizaria sua aplicação a eventos anteriores a sua vigência.

De fato, quando o sócio da pessoa jurídica prestadora de serviços é, na realidade, empregado ou mesmo diretor ou administrador nomeado da empresa tomadora, a constituição de pessoa jurídica por tais indivíduos para prestar o serviço à tomadora constitui simulação e abuso da personalidade jurídica, a justificar sua desconsideração e tributação dos pagamentos como salário, pro labore ou gratificação pagos a empregado, diretor ou administrador. Se o indivíduo já assume a função de prestador de serviço pessoa física nos quadros da empresa tomadora (como empregado, diretor ou administrador), é simulada a constituição de pessoa jurídica por tal indivíduo para prestar os mesmos serviços à mesma tomadora.

Fora dessas situações, é legítimo o interesse de constituir pessoa jurídica para viabilizar a separação patrimonial e a limitação da responsabilidade do sócio no exercício da respectiva atividade, permitindo que o indivíduo explore atividade econômica sem colocar em risco seus bens pessoais. Legítimo também, cumulativamente ou não com o propósito da frase anterior, o interesse associativo de sócios em formar sociedade para viabilizar o exercício da atividade e partilhar entre si seus resultados e riscos.

Foi aquele primeiro interesse que motivou a criação da Eireli, pessoa jurídica cujo único sócio explora a atividade de forma individual e pessoal, porém sem colocar em risco seus bens pessoais, mediante separação patrimonial e limitação de sua responsabilidade ao capital social da pessoa jurídica. A Eireli é prova de que o fato de um sócio desempenhar pessoalmente atividades da empresa não implica nem jamais implicou inexistência ou invalidade da pessoa jurídica.

Aliás, foi justamente a figura dessa pessoa jurídica que levou o CARF a desconstituir, em agosto de 2011, autuação lavrada contra artista. Os Conselheiros concluíram que a criação da Eireli deixou claro não haver óbice a impedir a atribuição de direitos personalíssimos (como os direitos patrimoniais da exploração do direito de imagem) a pessoa jurídica, já que o art. 980-A, §5º, do Código Civil, incluído pela Lei nº 12.441, de 11 de julho de 2011, permitiu expressamente atribuir a Eireli constituída para a prestação de serviços "a remuneração decorrente da cessão de direitos patrimoniais de autor ou de imagem, nome, marca ou voz de que seja detentor o titular da pessoa jurídica, vinculados à atividade profissional". Sendo legalmente possível a cessão, a desconsideração do negócio jurídico dependeria de uma análise fática (comprovação, por parte do Fisco, da ausência de qualquer justificativa de constituição da empresa). No caso em questão, mesmo sendo o período de apuração anterior ao art. 129 da Lei nº 11.196/05, a Turma decidiu cancelar a autuação pelo citado fundamento.

No caso específico de pessoas jurídicas constituídas por atletas e artistas com um segundo sócio que gere ativamente as atividades de exploração dos direitos de imagem, muitos dos atletas e artistas sequer teriam a possibilidade de auferir receitas com a exploração dos seus direitos de imagem se não fosse a atuação do segundo sócio, o que só reforça a justificativa de constituição e existência regular dessas pessoas jurídicas.

Para que o Fisco possa desconsiderar a existência de uma pessoa jurídica para fins tributários, deve comprovar cabalmente a ausência de qualquer das justificativas de constituição acima citadas. Do contrário, a presunção é de validade e existência regular da pessoa jurídica.

Em novembro de 2016, todavia, a CSRF decidiu que, em casos envolvendo atletas profissionais, se uma atividade tiver de ser desenvolvida pelo atleta (pessoa física), então a tributação deveria recair sobre a pessoa física. Seria o caso, por exemplo, da exploração da imagem do atleta por intermédio da pessoa jurídica por ele constituída. Tal decisão ainda não foi publicada e os períodos de apuração são anteriores ao art. 129 da Lei nº 11.196/05.

O tema voltou a ser discutido pela Segunda Seção do CARF ao menos em duas oportunidades neste ano. Em 8 de fevereiro, o CARF entendeu ser possível a cessão de direitos de imagem de atleta a pessoa jurídica para que esta aufira receita com patrocinadores e afins; mas manteve a tributação de pessoa física sobre valores pagos por clube de futebol à pessoa jurídica a título de remuneração pelo uso de direitos de imagem, por entender que tais pagamentos teriam íntima relação com o contrato de trabalho, correspondendo assim a complementação salarial. Embora os períodos de apuração sejam posteriores ao art. 129 da Lei nº 11.196/05, a turma analisou a natureza do dispositivo e concluiu que ele não seria interpretativo e, portanto, só seria aplicável a fatos ocorridos após sua vigência.

Em março deste ano, em outro julgamento de bastante repercussão, o CARF adotou posicionamento similar, mas reconheceu que o direito de imagem inclui toda a expressão humana (imagem, voz, ações, etc.), compreendendo obrigações de fazer do atleta que não descaracterizam a exploração de sua imagem pela pessoa jurídica (e.g., usar um boné ou consumir uma bebida). Os períodos de apuração nesse caso também eram posteriores ao art. 129 da Lei nº 11.196/05.

Vê-se, pois, que embora expressamente prevista e autorizada pela legislação societária e fiscal, a constituição de pessoa jurídica para desempenho de certas atividades ainda é tema controverso nos tribunais administrativos, devido à confusão cometida por alguns julgadores quanto à correta diferenciação das situações que autorizam daquelas que não autorizam essa forma de organização.

Por isso, é fundamental compreender corretamente as justificativas que autorizam a constituição de pessoas jurídicas e sociedades e, estando presentes, não se intimidar diante das arbitrariedades do Fisco nem da interpretação por vezes equivocada de alguns julgadores administrativos. Espera-se que a CSRF reveja seu entendimento mais recente e que, assim como o Poder Judiciário, analise a questão de forma técnica e compatível com o ordenamento jurídico em vigor.

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