1. O ICMS e seu fato gerador 

O ICMS é um imposto que incide sobre a circulação de mercadorias e a prestação de alguns serviços (telecomunicação e transporte intermunicipal e interestadual). Ou seja, é um imposto sobre consumo, já que incide sobre a venda de bens e serviços.

Ele é de competência estadual e do Distrito Federal. Mas, com o passar dos anos, tornou-se altamente complexo, não apenas pelas diferentes legislações de cada ente federativo, como também pelas diferentes peculiaridades de produtos e setores econômicos, além dos conhecidos benefícios fiscais. Dessa forma, está no centro de diversas discussões judiciais.

Na forma do artigo 155, II da Constituição Federal, foi atribuída aos Estados e ao Distrito Federal a competência para instituir impostos sobre as “operações relativas à circulação de mercadorias”.

A doutrina destaca que a circulação de mercadorias a que se refere o dispositivo constitucional diz respeito à circulação jurídica, que pressupõe efetivo ato de mercancia, visando a obtenção de lucro e a transferência de titularidade.

Para que se possa falar em fato gerador do ICMS, portanto, é preciso que haja uma efetiva troca de titularidade sobre um bem colocado à mercancia. Isso faz sentido, também, ao considerarmos que o ICMS é um tributo sobre consumo, o que pressupõe a aquisição de um bem pelo consumidor, envolvendo, portanto, uma efetiva alteração do seu titular.

2. A transferência de mercadorias

Na atual realidade brasileira, é comum que as empresas possuam diversos estabelecimentos no país.

Essa medida geralmente é necessária por questões logísticas, considerando a extensão do território brasileiro. Não se pode ignorar, também, a existência de estabelecimentos diversos em razão de planejamentos tributários e pela concessão de benefícios fiscais pelos Estados.

Independentemente disso, é comum que haja a necessidade de se transferir e mover insumos, produtos e mercadorias entre os diversos estabelecimentos de uma mesma empresa.

No campo tributário, durante muito tempo se discutiu qual seria a natureza das filiais de uma pessoa jurídica, embora no campo do direito societário e comercial estivesse já bem estabelecido que a filial nada mais é do que uma extensão da matriz. Isto é, parte integrante da mesma pessoa jurídica, para fins fiscais.

Há algum tempo, predominava uma jurisprudência que entendia que as filiais possuiriam autonomia e deveriam ser enxergadas como entes autônomos.

A base desse entendimento era o artigo 127 do Código Tributário Nacional, segundo o qual o domicílio tributário seria considerado: “quanto às pessoas jurídicas de direito privado ou às firmas individuais, o lugar da sua sede, ou, em relação aos atos ou fatos que derem origem à obrigação, o de cada estabelecimento”.

Isso, inclusive, gerava empecilhos processuais. Afinal, muitas vezes uma ação a ser ajuizada para discutir algum tributo apurado em filial tinha que contar com uma representação específica dessa filial e observar regras de competência em relação a ela e não sua matriz.

Sustentando-se nessa autonomia de personalidade, também há notícias de decisões que permitiram a emissão de certidões de regularidade fiscal apenas em nome da filial.

Além disso, ainda se tem notícias de decisões que impediram a penhora de bens que estavam localizados em outro estabelecimento, diverso daquele que originara o débito tributário executado.

Enfim, esse entendimento criava uma série de reflexos, claramente não antecipados pelo Judiciário na formação de tal jurisprudência.

Recentemente, esse entendimento vem sendo superado, como por exemplo no AResp 1.273.046/RJ, no qual o Superior Tribunal de Justiça bem declarou que:

As filiais são estabelecimentos secundários da mesma pessoa jurídica, desprovidas de personalidade jurídica e patrimônio próprio, apesar de poderem possuir domicílios em lugares diferentes (art. 75, § 1º, do CC) e inscrições distintas no CNPJ.  O fato de as filiais possuírem CNPJ próprio confere a elas somente autonomia administrativa e operacional para fins fiscalizatórios, não abarcando a autonomia jurídica, já que existe a relação de dependência entre o CNPJ das filiais e o da matriz”.

E é justamente esse o entendimento que reforça a tese que trataremos aqui.

Se as filiais fazem parte de uma mesma pessoa jurídica, a transferência de bens entre elas não representa uma circulação jurídica, pois não haverá alteração de titularidade sobre eles. Há, apenas, um deslocamento físico de tais bens.

3. Jurisprudência sobre o tema

A discussão não é exatamente nova nos tribunais. Em agosto de 1991, o STJ havia editado a Súmula 166 sobre o tema, estabelecendo que: “Não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte”.

Em 2010 o mesmo tribunal analisou o tema sob o rito dos recursos repetitivos (Tema 259), nos autos do Recurso Especial nº 1.125.133/SP, quando ficou decidido pela Primeira Seção daquela Corte que: “o deslocamento de bens ou mercadorias entre estabelecimentos de uma mesma empresa, por si, não se subsume à hipótese de incidência do ICMS, porquanto, para a ocorrência do fato imponível é imprescindível a circulação jurídica da mercadoria com a transferência da propriedade”.

Naquela ocasião, o então relator, ministro Luiz Fux, destacou que o mero deslocamento de mercadorias de um para outro estabelecimento de um mesmo contribuinte não enseja a aplicação do ICMS, porquanto a “circulação” a que se refere o texto constitucional é justamente a circulação jurídica, quando há ato de mercancia.

Já havia, portanto, uma considerável jurisprudência favorável aos contribuintes.

Se isso não bastasse, o Supremo Tribunal Federal também analisou o Recurso Extraordinário com Agravo nº 1.255.885 sob o rito de repercussão geral (Tema 1099), firmando a seguinte tese: “Não incide ICMS no deslocamento de bens de um estabelecimento para outro do mesmo contribuinte localizados em estados distintos, visto não haver a transferência da titularidade ou a realização de ato de mercancia”.

É importante notar que todos esses precedentes não faziam qualquer diferenciação da tese caso os estabelecimentos estivessem em Estados diferentes.

Em abril de 2021, ainda, o STF julgou a Ação Declaratória de Constitucionalidade (“ADC”) nº 49 para, por unanimidade de votos, declarar a inconstitucionalidade de dispositivos da Lei Complementar nº 87/1996 (Lei Kandir) que justamente previam a ocorrência de fato gerador do ICMS na transferência interestadual de mercadorias entre estabelecimentos de um mesmo contribuinte.

A ementa do caso foi a seguinte:

Ementa: DIREITO CONSTITUCIONAL E TRIBUTÁRIO. AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE. ICMS. DESLOCAMENTO FÍSICO DE BENS DE UM ESTABELECIMENTO PARA OUTRO DE MESMA TITULARIDADE. INEXISTÊNCIA DE FATO GERADOR. PRECEDENTES DA CORTE. NECESSIDADE DE OPERAÇÃO JURÍDICA COM TRAMITAÇÃO DE POSSE E PROPRIDADE DE BENS. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE.

  1. Enquanto o diploma em análise dispõe que incide o ICMS na saída de mercadoria para estabelecimento localizado em outro Estado, pertencente ao mesmo titular, o Judiciário possui entendimento no sentido de não incidência, situação esta que exemplifica, de pronto, evidente insegurança jurídica na seara tributária. Estão cumpridas, portanto, as exigências previstas pela Lei n. 9.868/1999 para processamento e julgamento da presente ADC.
  2. O deslocamento de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular não configura fato gerador da incidência de ICMS, ainda que se trate de circulação interestadual. Precedentes.
  3. A hipótese de incidência do tributo é a operação jurídica praticada por comerciante que acarrete circulação de mercadoria e transmissão de sua titularidade ao consumidor final.
  4. Ação declaratória julgada improcedente, declarando a inconstitucionalidade dos artigos 11, §3º, II, 12, I, no trecho “ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular”, e 13, §4º, da Lei Complementar Federal n. 87, de 13 de setembro de 1996.

Ou seja, basicamente todos os mecanismos processuais de consolidação de jurisprudência e formação de precedentes foram invocados e aplicados nesse tema.

É possível dizer, assim, que desde a década de 1990 os Estados já sabiam do entendimento das Cortes Superiores de que o ICMS não poderia incidir sobre o simples deslocamento de mercadorias entre filiais de um mesmo contribuinte.

A grande surpresa nesse contexto foi o fato de que, no julgamento da ADC 49, o STF acabou modulando os efeitos de sua decisão, determinando que ela apenas tivesse aplicabilidade a partir de 2024, para que os Estados tivessem tempo de regulamentar o tema, em especial a questão da transferência de créditos entre tais estabelecimentos.

Ora, a modulação de efeitos é um instrumento que deve ser utilizado com parcimônia e tem como um dos fundamentos evitar a surpresa dos jurisdicionados em caso de uma alteração de jurisprudência, observando-se os interesses econômicos e sociais.

Embora o tema tenha grande impacto para os Estados, não se pode dizer que tenha havido qualquer alteração de jurisprudência ou surpresa no entendimento do tema, quando as duas Cortes Superiores possuíam precedentes vinculantes, favoráveis aos contribuintes.

Ainda que tenham sido ressalvados os processos judiciais e administrativos pendentes de conclusão até a data de publicação da ata de julgamento da ADC 49 (29/04/2021), fato é que tal modulação afeta milhares de contribuintes que indevidamente recolheram o ICMS sobre tais operações, mesmo havendo extensa jurisprudência favorável a eles.

4. A transferência de créditos e a nova legislação

Talvez o ponto de maior discussão nesse assunto – pois quanto ao mérito, como visto, os tribunais já possuíam um sólido entendimento favorável aos contribuintes – é a forma de operacionalização das transferências, quando os estabelecimentos estão localizados em Estados diferentes.

Por ser não cumulativo, o ICMS permite que o contribuinte aproprie créditos sobre os insumos, materiais intermediários e materiais de embalagem que sejam adquiridos e empregados na produção dos bens comercializados. Essa sistemática faz com que, a cada etapa, o ICMS seja recolhido sobre o valor agregado à mercadoria.

Por exemplo, o contribuinte que compra R$ 1.000,00 em insumos para produzir um produto que será vendido a R$ 1.200,00, poderá apropriar créditos sobre tais insumos (por hipótese, R$ 200,00 em uma alíquota fictícia de 20%).

Na venda do seu produto a R$ 1.200,00, o ICMS incidente seria de R$ 240,00 (também na alíquota fictícia de 20%). Como o contribuinte possui o crédito sobre as aquisições de R$ 200,00, o valor a ser pago seria de apenas R$ 40,00, que é o mesmo do que se o ICMS incidisse apenas sobre os R$ 200,00 que foram agregados pelo contribuinte na sua etapa de produção (20% x R$ 200,00).

A questão é, se a mercadoria é transferida para outra filial, não há a venda/circulação de mercadoria. O que acontece, então, com os R$ 200,00 de crédito que foram apropriados na aquisição dos insumos?

A Fazenda alega que esses créditos deveriam ser cancelados/estornados com base no artigo 155, § 2º, que estabelece que a isenção ou não-incidência acarretará a anulação do crédito relativo às operações anteriores.

Felizmente, esse entendimento foi afastado pelo Judiciário, tendo em vista que essa previsão constitucional apenas deveria ser aplicada na situação em que efetivamente há uma operação de circulação de mercadoria, mas sujeita à isenção ou não-incidência. No caso das transferências de mercadorias o que ocorre é que não há circulação de mercadorias, não se configurando fato gerador do imposto. Logo, a vedação ao crédito inexiste.

Mas uma vez mantidos os créditos, como operacionalizar a tese firmada com o fato de que pode haver diferentes Estados envolvidos? O crédito é, efetivamente, uma “moeda de pagamento” para abater o ICMS devido.

Se o ICMS da entrada (que geraria o crédito para o adquirente) não foi pago ao mesmo Estado, a oposição de um crédito para abater o ICMS devido na saída efetivamente representa uma redução do ICMS pago a esse Estado.

Quando as filiais estão em um mesmo Estado há um impacto menor, seja porque, geralmente, a apuração é feita de forma centralizada, agrupando-se a apuração de todos os estabelecimentos, seja porque o crédito a ser usado está sendo oposto ao mesmo Estado.

Porém, quando a filial está em um outro Estado é preciso criar algum mecanismo de transferência deste crédito.

Antes da ADC, quando ainda havia previsão na legislação para a incidência do ICMS, os créditos eram “transferidos” pela mecânica normal de débito e crédito, pois as operações eram normalmente tributadas.

Agora, atendendo ao que foi determinado pelo STF, recentemente foi publicada a Lei Complementar 204/2023, que já nasce envolta de novas dúvidas de potencial judicialização do assunto.

Isso porque não está claro na redação da lei se os contribuintes seriam obrigados a transferir os créditos para o Estado para onde a mercadoria foi transferida. Apesar do exemplo acima, nem sempre há uma vinculação direta entre o crédito da entrada e a saída. É possível, inclusive, que em algumas situações seja impossível fazer essa vinculação.

Dessa forma, não faria sentido obrigar que os contribuintes transfiram um crédito que é seu e que, a rigor, poderiam ser utilizados por ele no Estado de origem, onde foram registrados inicialmente.

O segundo ponto de possível discussão diz respeito ao cálculo do crédito a ser transferido.

A LC prevê que o crédito será assegurado pelo Estado de destino, limitado à aplicação das alíquotas do ICMS previstas na legislação, aplicadas sobre o valor atribuído à operação, sem que haja melhor especificação sobre como apurar o valor da operação, já que o dispositivo que antes tratava disso foi declarado inconstitucional na mesma ADC 49.

Para complementar o cenário caótico, também foi editado o Convênio ICMS 178, por meio do qual os Estados pretendiam regular o tema. Este convênio também é questionável em razão de sua legitimidade normativa para tratar do assunto, já que os aspectos à apuração do imposto são de competência privativa de Lei Complementar, nos termos do artigo 146, da Constituição.

No texto do convênio, a transferência de créditos seria obrigatória – levantando, portanto, o mesmo ponto de discussão da LC.

O outro ponto, mais grave, diz respeito à forma de apuração do crédito, pois ela exige que o contribuinte registre um débito no estabelecimento remetente, apurado pela aplicação da alíquota do ICMS sobre o custo da mercadoria, assim entendido o custo da matéria-prima, material secundário, mão-de-obra e acondicionamento.

Ou seja, há uma clara confusão entre os créditos da entrada (que são apurados apenas sobre o custo dos insumos adquiridos) e a transferência de um crédito fictício, apurado sobre uma base maior do que a dos créditos da entrada.

Na prática, portanto, o contribuinte será obrigado a registrar um débito que equivaleria ao próprio ICMS incidente sobre a operação, como se ela fosse tributada.

Aparenta, assim, uma forma de contornar o que foi decidido pelo STF, mantendo uma tributação indireta sobre as operações de transferência.

Apesar de décadas discutindo o tema, aparentemente os contribuintes ainda enfrentarão alguns bons anos de discussão sobre a correta aplicação do entendimento dos tribunais.

É o típico cenário do contencioso tributário brasileiro.

The content of this article is intended to provide a general guide to the subject matter. Specialist advice should be sought about your specific circumstances.